sábado, junho 28, 2014

Uma Família em Tóquio

O filme que eu mais queria ver esse ano era Uma família em Tóquio, de Yoji Yamada, um remake de Era Uma Vez em Tóquio, de Ozu, amplamente considerado um dos melhores filmes de todos os tempo. Há o fator mórbido da coisa, a coragem. Não se trata de algo "inspirado", como, sei lá, All That Jazz é inspirado em Oito e Meio, e sim uma refilmagem mesmo; como então alguém tem coragem de mexer num cânone cada vez mais forte? Consegue imaginar alguém tocando em Hiroshima Mon Amour, Cidadão Kane ou Viver a Vida? É mais ou menos a mesma coisa.
Pois bem, há esse fator, mas ele é mínimo. O que me interessa mesmo era ver como o cinema ultra específico de Ozu se presta a uma atualização, porque ele mesmo fazia e refazia os mesmos filmes, então isso não é exatamente um problema.
O que sempre me afetou profundamente em Ozu foi o modo como ele abria uma janela pro Japão. Os conflitos entre jovens e velhos nunca são apenas isso, e sim um retrato mais ou menos zen de um país que teve uma transição brutal, do feudalismo pro mundo contemporâneo em 80 anos, sem ter uma idade moderna, um iluminismo.
Vários cineastas trabalharam essa relação no Japão por meio do sobrenatural. Quando vimos, sei lá, Contos da Lua Vaga, de Mizoguchi, ou Kwaidan, de Masaki Kobayashi, fica meio claro que essa convivência entre os vivos e os mortos é uma consequência da brutalidade desse processo histórico, a ponto que mesmo depois do choque de realidade de duas bombas atômicas um país ainda consegue tirar das costas o peso de milênios de tradições.
Ozu, super realista e intimista, também tinha os seus fantasmas, mas eles eram os velhos. Toda a tensão entre geracional que é marcante na sua obra, especialmente depois de Pai e Filha reflete a dificuldade de desapegar do passado, de ter que viver mesmo assim. A morte dos velhos não é apenas essa morte, e sim o fim de um país, uma era, uma civilização. Daí o tempo ser tão inflexível, tão brutal. Ele arrasta tudo, e não tem volta. Essa é a condição existencial do cinema de Ozu, ele que morreu ainda jovem e colocou na sua lápide apenas um ideograma, o Mu, que significa "vazio".
O que sobre então para Yamada, uma vez que esses conflitos com o tempo, nesse corte específico, ao menos no cinema, foram apaziguados (os velhos de Yamada seriam talvez as crianças já modernas de Ozu, que deixavam de falar com o pai porque não tinham uma televisão em casa)?
Óbvio que o filme não tem nem de longe o punch do original, mas sobra muito, muito mesmo, especialmente uma tradição de, perdoem-me a simplificação, "melodrama oriental humanista" que pelo menos de cinco em cinco anos nos entrega (ao Ocidente?) obras realmente marcantes, de emoção sincera. Os planos baixos de Ozu estão todos lá, mas esse filme aqui é bem mais um parente de, digamos, Sonata de Tóquio, de Kiyoshi Kurosawa, do que qualquer filme que Ozu tenha feito.
Tô reclamando? Nem um pouco. Uma Família em Tóquio é um belo filme, muito mais se a gente esquecer de onde vem a inspiração, ou lidar bem com o fato de que essa inspiração é só uma questão de trama, algo bem superficial. No frigir dos ovos, é sim, uma das melhores coisas lançadas nos cinemas este ano.