sábado, junho 04, 2016

Julieta, As Memórias de Marnie



Em Má Educação, de Pedro Almodóvar, dois personagens atormentados pela sombra de um assassinato entram numa sala de cinema onde está em cartaz um festival de filmes noir. Na saída, um diz para o outro: por que todos os filmes falam sobre a gente?

Em Cannes, vi o último filme do mesmo Almodóvar, Julieta, um filme doloroso sobre os abismos que se criam entre pessoas que se amam e os silêncios que as separam. Hoje eu vi (acabei mesmo de ver) a animação japonesa As Memórias de Marnie, de Hiromasa Yonebayashi, que é basicamente o mesmo filme que Julieta, outra obra sobre pessoas ligadas por laços familiares e sentimentais que não conseguem se comunicar. Em ambos os filmes, Julieta e As Memórias de Marnie, me senti como a personagem de Má Educação: todos os filmes falam sobre mim.


Por mais que eu enxergue imensas qualidades nesses filmes, sinto imensa dificuldade em saber quando a minha admiração estética acaba e quando começa a pura e simples identificação ou o choque de ver a própria história numa tela de cinema, com as mesmas dores, as mesmas zonas sombrias.

Cheguei a Angola há sete anos. Meu pai só soube que eu estava aqui alguns meses depois, e demorou até que conseguisse falar comigo devido a barreiras que eu mesmo pus e sustentei. Anos depois, numa viagem curta a Belém - numa fase difícil, quando finalmente me percebi adulto, descobri que um dia eu iria morrer e resolvi acertas algumas pontas soltas da vida antes de seguir em frente -, meu pai me contou a mesma história. Ele havia simplesmente desaparecido de Belém e ganhou o Brasil pouco depois da adolescência, sendo redescoberto apenas anos depois na Bahia.

Não conto isso aqui para transformar a minha história em melodrama nem para pedir compaixão - está tudo resolvido, na medida do possível. Muito pelo contrário, faço isso para afirmar a potência e o poder de comunicação e reflexão desses filmes. Não acredito, mesmo, que a minha relação de admiração com eles fosse tão diferente caso eu tivesse uma outra história pessoal, mas me parece um fato de que ter essa história cria um atalho para que esses filmes batam certo e rápido.

Woody Allen quis desdizer o ditado e escreveu no roteiro de Maridos e Esposas que a vida imita a televisão ruim. Talvez, mas acho que a arte, sim, imita e amplifica a vida, e assim, muitas vezes nos dá a dimensão exata das escolhas que fazemos e do nosso lugar no mundo a partir dessas escolhas.

Julieta estreia no Brasil em 7 de Julho. Será o grande filme desse ano. As Memórias de Marnie entrou em cartaz ano passado em várias capitais, incluindo Salvador, e acabou de sair em dvd e bluray pela Califórnia Filmes. Também pode ser encontrado no site de torrents mais próximo.

2 comentários:

Paulo Sales disse...

Assisti ontem a Julieta e voltei aos seus textos sobre o filme, que também achei magnífico. Um belo tratado sobre perda, culpa e a persistência da memória, que me deixou com o peito apertado.
O que me chamou a atenção no seu texto acima foi o questionamento que você faz sobre até onde vai a admiração estética e começa a identificação com a própria história. Creio que o trabalho crítico - e sempre escrevi partindo desse princípio - deve vir acompanhado obrigatoriamente das nossas vivências, da nossa visão de mundo, de quem somos. É o que enriquece a crítica. A pura fruição estética me soa vazia ou ao menos incompleta, e isso me incomoda no trabalho de alguns críticos, um academicismo meio estéril. Não é o seu caso.
Lembrei agora daquela frase de Pessoa, "O que vemos não é o que vemos, senão o que somos".
Enfim, continue escrevendo.
Abraços
Paulo

Saymon Nascimento disse...

Valeu! Nem imaginava que alguém ainda lia isso aqui. Abraço!