A primeira é o deslumbrante Deixa Ela Entrar, um filme que atualiza toda a mitologia vampiresca para um corte impecavelmente nórdico, tanto no seu ritmo muito mais lento e calculado, quanto na delicadeza com que esse cinema costuma tratar os sentimentos, mesmo os mais sutis. Quase 20 anos depois, não tem como negar em Deixa Ela Entrar o DNA da obra-prima Minha Vida de Cachorro nesse relato dos ritos de passagem da infância à adolescência.
>>> O outro filme é menos popular, mas é igualmente convicto e apaixonado por seu ponto de vista de cinema, um ponto de vista que privilegia a forma, o espetáculo, a grande narrativa hollywoodiana em sua versão mais opulenta. Em Austrália, depois de três filmes sensacionais margeando as popices contemporâneas filtradas por todas as mídias e artes ao mesmo tempo, Baz Luhrmann firmou o foco no cinema e pôs pra fora deliberadamente seu repertório histórico numa tirada de chapéu ao glorious technicolor, breath-taking cinemascope & stereophonic sound.
É um filme que tem martelado minha cabeça - só sumiu na hora da lista - e o que tinha a dizer sobre ele foi mais ou menos cuspido numa discussão no orkut, onde postei os três parágrafos a seguir. Como não vou conseguir me articular melhor, reposto aqui:
"Sempre associei o cinema dele a uma coisa quase circense de conseguir se equilibrar mesmo em altíssima velocidade, não só em sua formatação cinematográfica, câmera, edição, clip, mas também à capacidade inflar o banal e o superficial rumo a uma estarração dessa superficialidade.
"Tem uma frase do Inácio na crítica de Maria Antonieta que passou a me perseguir quando eu penso em Baz Luhrmann. Inácio adora o filme, mas reclama que Kirsten Dunst não é superficial o suficiente para a personagem, e é assim que eu penso em Luhrmann, tendo atingido esse grau de superficialidade suficiente para que seus filmes sejam balões de gás ultraimpactantes.
"E o curioso é que este impacto acaba por comentar a superficialidade de que deveria fazer parte, mas não faz, justamente pela inteligência de sua metalinguagem. Nada solene, aliás, mas agressiva, uma autofagia doida do cinema sobre o cinema que tem um par menos nervoso e mais elegante em Brian de Palma".
Enfim, ele continua filmando com uma fome incrível de imagem, tirando grandes cenas a partir de um roteiro que é um praticamente um nada, mas um nada que pede pra ser filmado em grande escala. Pode-se usar essa ideia justamente para criticá-lo – glorificação do vazio, entronização do pastel de vento –, mas acho que o sentido da avaliação é contrário. A manipulação da forma torna o cinema tema de si mesmo e revela mais uma vez um diretor ciente de seu poder ao conduzir a relação das pessoas com a mentira, a fantasia e a arte.
Mesmo tendo renegado o filme, chama a atenção a preciosa atuação de Nicole Kidman, atriz que não tem medo de fazer a southern belle texana com sotaque britânico, à moda de Vivien Leigh. Faz tempo que ela, quase sempre formidável, não aparecia na tela com tanto vigor, consciente do poder de seu megaestrelato e da função deste em um filme tão empenhadamente fake.
Depois de suas exaustivas três horas – as melhores três horas que Hollywood nos proporciona desde o maravilhoso King Kong de Peter Jackson – resta a pergunta: e agora, Baz Luhrmann? Sua carreira ficou num enigma, e seus veios parecem esgotados pela própria energia aplicada em cada um de seus filmes: poderá ele voltar ao musical depois de Moulin Rouge? Seu pós-modernismo não já era passé desde Romeu + Julieta? Como poderá filmar em Hollywood mode após Austrália? Esperamos que a resolução deste impasse não seja a repetição, mas outra tomada de risco.
>>> Também em três horas de delírio hollywoodiano, aproveito pra mencionar o desbunde do Avatar de James Cameron. O filme é super, mais uma prova do imenso talento de Cameron a conduzir ação/aventura, talento inabalado mesmo com férias de dez anos desde Titanic - por sinal, um excelente thriller.
Se o lado montanha russa é de ficar embasbacado - a maioria absoluta dos blockbusters aventurescos me causa um tédio infernal -, essa história de futuro do cinema é forçação. Não adianta ter a tecnologia de ponta mais desgraçada do mundo que isso não significa nada diante de uma narrativa que é quase Errol Flynn, um capa e espada dos anos 30 mais bem equipado, e pronto.
Nada contra isso, aliás, super a favor, mas, futuro, futuro mesmo, tá muito mais nas Ervas Daninhas de Resnais. Tá ali uma sessão à prova de naftalina.
5 comentários:
"Ervas Daninhas" realmente é ótimo.
"Mamãe, quando eu for gato vou poder comer ração para gatos?".
Sobre Avatar, tenho uma coisa rápida a dizer. Alguém ainda assiste, se não for por curiosidade histórica, o primeiro filme falado? Você lembra do primeiro filme em technicolor? E do primeiro filme em cinemascope?
Não, mas todo mundo lembra do primeiro GRANDE filme falado (acho que seria blackmail, do hitchcock), dos grandes coloridos (Rope do hitchcock, Os homens preferem as loiras), ou em cinemascope (La dolce Vitta).
É isso, Avatar foi o primeiro 3D. Legal, garantiu seu lugar na história, mas tá LONGE de garantir seu lugar no cânone cinematográfico.
E pra todo mundo que acha que aquele planeta e bichos são a coisa mais inovadora do mundo, é só mandar ler Metal Hurlant e qualquer coisa do Moebius.
Avatar e' um marco na historia do cinema. Ha que reconhecer isso. Saynon sabe disso.
Que Avatar é um marco e sempre será citado como tal na história do cinema, isso é. Que o visual do filme é um desbunde, como diz saymon. também concordo, de embasbacar mesmo, de dar claustrofobia, mas tirando isso, o filme não me convenceu. Quanto a Titanic, na época senti o impacto,mas a medida que o filme envelhece me dá um tédio terrível.
Haha, gostei do que falou sobre AVATAR. Concordo plenamente.
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